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A médica que nunca quis tratar crianças com câncer

Há 2 anos

Para contar a história de como Silvia Regina Brandalise ajudou a revolucionar o tratamento de câncer infantil no Brasil, precisamos voltar a 1976.

Aos 33 anos, a jovem pediatra já ostenta um currículo invejável. Formada em Pediatria pela Universidade Federal de São Paulo em 1968, ela se mudou para Campinas no ano seguinte para participar da fundação da Faculdade de Medicina da Unicamp. Atendendo crianças na Enfermaria Pediátrica da Unicamp, que funciona na Santa Casa de Misericórdia, ela conquistou a confiança de pacientes, familiares e colegas. Promovida a chefe da Enfermaria, é responsável por 50 leitos. Trabalha o dia todo no atendimento aos pacientes e leciona na faculdade à noite. Dedicada, Silvia conhece nomes e prontuários de todas as crianças sob seus cuidados.

Ou quase todas.

Um dos pacientes é André Zavarchenko, 5 anos. Sofre de leucemia e é o único a quem Silvia não atende. A doença é específica, deve ser tratada por hematologistas. Pediatras nada podem fazer pelo menino. Silvia sabe que àquela altura, no Brasil, André tem apenas 5% de chances de cura.

Um dia, a residente Maria Aparecida Brenelli lhe pede para olhar o menino. Ele está muito mal, a residente acha que ele não vai resistir. Silva recusa, nada entende da doença, não saberá como ajudar. A residente cai no choro. O menino, então, vai morrer… Silvia respira fundo. Lágrimas alheias são seu fraco, sempre foram. Para acalmar a residente, ela aceita revisar o prontuário de André. Constata que várias medidas recomendadas pelo hematologista estão perfeitas para adultos, mas não funcionam com crianças. Silvia corrige os procedimentos e André reage.

Alguns dias mais tarde, a mãe pede ajuda. A família tem posses, quer levar o menino para tratamento nos Estados Unidos. Silvia entra em contato com um antigo professor seu na Unifesp. João Rhomes Amim Aor havia se mudado para Memphis, centro mundial de referência no tratamento da leucemia infantil. A família marca a viagem mas, na véspera, pede que Silvia a acompanhe. A médica recusa, a mãe diz que nesse caso, vai cancelar tudo. André começa a chorar… Lágrimas, de novo. E lá vai a doutora Silvia, acompanhar a família a Memphis.

Depois de examinar André, a equipe médica do hospital americano constata que ele não tem mais chances de cura. Para que surtam efeitos, os tratamentos precisam começar na fase inicial da doença. Aor explica tudo isso a Silvia e entrega a ela os protocolos em vigor no hospital americano: “Leve isso para o Brasil. Se você iniciar o tratamento cedo, a chance de cura é de 50%”.

Dessa vez, quem cai no choro é Silvia Brandalise. Ela abraçou a pediatria para curar crianças, não para perdê-las para a morte. Não quer enfrentar essa batalha. Na volta ao Brasil, a médica continua cuidando de André pelos meses seguintes, até que ele perde a batalha para a Leucemia. Silvia guarda os protocolos e decide esquecer o assunto.

Quando a história está traçada, porém, não há como mudá-la.

Pouco mais de um ano se passa e surge um novo André no caminho da doutora Brandalise, desta vez de sobrenome Macluf. Sobrinho de outra residente da pediatria da Unicamp, ele adoece e os médicos não conseguem fechar diagnóstico. A residente leva o menino a Silvia e ela desconfia de leucemia. Recomenda à família um hematologista em São Paulo. O colega confirma o diagnóstico e inicia o tratamento. Poucas semanas depois, a mãe volta para agradecer. André reagiu tão bem que o médico já suspendeu a medicação.

Silvia entra em alerta. Depois da experiência em Memphis, ela sabe que o tratamento é longo e precisa ser mantido. Mesmo que o paciente apresente melhora.

Ela pega os protocolos americanos e vai a São Paulo conversar com o hematologista. O colega passa os olhos pelos documentos: “Eu conheço bem essa doença, doutora, pode ficar tranquila”. Silvia volta frustrada e liga para o professor Aor em Memphis, que é bastante direto: “O colega está desatualizado e o menino vai morrer. Agora, você pretende cuidar dele? Se a resposta é não, pare de se intrometer”.

Algumas semanas depois, o menino piora. A família pede ajuda e dessa vez, Silvia sabe que o tempo é crucial. Ela pede licença na Unicamp e vai com André para Memphis.

Na volta, Silvia decide continuar o tratamento de André. Decide, também, atender mais crianças com câncer. Pede demissão de sua carreira exitosa na Unicamp, aluga um casarão vizinho à Santa Casa e inicia o trabalho que se transformaria, anos depois, no Centro Infantil de Doenças Hematológicas Domingos A. Boldrini, voltado exclusivamente ao tratamento do câncer infantil.

André Macluf se curou e hoje é dentista. O Departamento de Pediatria da Unicamp não aceitou a demissão de Silvia Brandalise e ainda a auxiliou a formatar o modelo de entidade sem fins lucrativos para o hospital que ela pretendia iniciar. Com a ajuda de doadores e grupos sociais de Campinas, o Boldrini se transformou numa referência na América Latina e no maior centro nacional de pesquisas científicas sobre câncer infantil.

Atualmente, ocupa 1.300 metros quadrados e conta com 79 leitos, UTI, Unidade de Transplante de Medula Óssea, Centro Cirúrgico, laboratórios de Patologia Clínica e de Genética e Biologia Molecular. Em 2020, os 713 funcionários – dos quais 85 médicos – atenderam 1.484 novos pacientes com câncer. Foram realizadas 3.556 internações hospitalares e 14.737 sessões de quimioterapia. Desse total, 80% foram atendidos pelo Sistema Único de Saúde.

Ao longo dos últimos 43 anos, Silvia Brandalise desenvolveu protocolos nacionais de tratamento da Leucemia Linfóide Aguda e elevou a taxa de cura do câncer infantil no Brasil para 80%. O que ela acha desse crescimento percentual expressivo? “É pouco. Só sossego quando atingir 100%!”.

Aos 78 anos, Silvia Regina Brandalise continua dando expediente no Boldrini das 7 da manhã às 7 da noite, incansável em sua busca pela cura para todas as crianças com câncer.

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